julho 30, 2011

A ilusão da vida em "One past two"

"One past two" é um filme de animação de 05 minutos, roteirizado, animado e dirigido por uma jovem holandesa de 22 anos, Aimée de Jongh, que foi apresentado neste mês como trabalho de graduação na Escola de Mídia e Design da Willem de Kooning Academy, de Roterdã. Confesso nunca ter visto um filme de estudante tão tocante e tão bem estruturado. Na verdade, Aimée - que inclusive cuidou sozinha de toda a concepção visual do filme (storyboard, design de personagens e cenários) - trabalha com a destreza de uma profissional. Certamente sua experiência de alguns anos no campo dos quadrinhos e da ilustração fez toda a diferença. Entrei em contato com Aimée logo após descobrir o seu filme na web, para pedir sua autorização para vincular no GRAPHICINEMA uma versão do seu filme com legendas em português. Aymée gentilmente atendeu o pedido e inclusive me enviou algumas imagens da produção de "One past two", que utilizo, junto com outras extraídas do seu blog, para ilustrar os comentários que são apresentados após o vídeo, nesta postagem. Para que o impacto emocional do filme não seja dimuído, recomendo que o vídeo seja assistido primeiro, antes da leitura do texto que segue.

A versão original do filme, sem as legendas em português, pode ser vista aqui.



O final de "One past two" é surpreendente. O que inicialmente se apresenta com uma história de "rapaz encontra moça" acaba por se revelar como um filme sobre o encontro das almas de dois jovens estudantes, ambos feridos num absurdo atentado, num mundo entre a vida e a morte, aguardando Caronte para levá-los definitivamente para o mundo dos mortos. Na mitologia grega, Caronte é aquele que recebe as almas dos que acabaram de morrer e as transporta, num barco, para o reino de Hades, onde ficam os mortos. Adaptado para o contexto dos estudantes, o Caronte de "One past two" é o motorista do ônibus. Com os recentes massacres na Noruega e na escola de Realengo, Rio de Janeiro, em abril deste ano, a revelação de "One past two" se apresenta ainda mais triste e arrepiante.

No entanto, não é propriamente no final surpreendente que reside a força emocional de "One past two" e sim na forma como a diretora Aimée constrói os personagens dos dois estudantes no início do filme. Aliás, o final só ganha força e impacto porque os personagens são críveis e envolventes. O destino trágico de Tim e Eve só nos toca porque passamos a gostar deles e nos identificamos com eles. E o que chama a atenção é que Aimée consegue este resultado em apenas quatro minutos, utilizando "desenhos animados". No entanto, Aimée não faz os seus desenhos simplesmente se moverem, mas lhes dá alma (latim: anima) e neste sentido faz jus ao real significado do verbo "animar". Em outras palavras, esta jovem artista holandesa cria, com seus desenhos em movimento, a "ilusão da vida"(1) - feito notável para quem ainda está no início da carreira, na área da animação.

Aimée tira proveito de todas as nuances das interpretações vocais (ótimas, por sinal) e as ilustra inserindo expressões e trejeitos que dão veracidade e simpatia aos personagens. O design dos personagens também contribui para reforçar este aspecto. Eve e Tim foram projetados para representarem jovens comuns, com os quais todos possam se identificar.


É interessante ver o processo de concepção dos personagens e perceber como foi buscada uma aparência mais casual, que lhes desse simplicidade e informalidade. Há também nos personagens um curioso paradoxo: apesar da animação cuidadosa torná-los críveis, nós não deixamos de vê-los enquanto "desenhos", graças ao traço forte, não tão preciso, com linhas e contornos acentuados. Em "One past two" é possível notar a presença da mão do desenhista. Este aspecto inclusive dá ao desenho mais espontaneidade, além de um caráter mais humano, mais tátil -mais expressivo, portanto.

Estudo do plano no qual o background se revela na sua totalidade


 Esta expressividade também está presente nos backgrounds. O fundo cinza, pintado à mão, está sempre em movimento, criando uma sensação misteriosa e, de certa forma, sinistra - uma espécie de dica de que há algo estranho por trás (também literalmente) do bate-papo descompromissado dos dois jovens estudantes. O background estabelece um contraste em dois níveis: ele tanto se opõe à leveza do diálogo entre os jovens, como também cria o contraste visual necessário para que o espectador concentre sua percepção nos personagens. O background só se impõe de forma mais assertiva, revelando-se mais ao espectador, no momento em que Eve morre (isto é, quando passa a sentir frio). Uma pontuação visual muito significativa, que inclusive fornece o gancho para o segundo momento do filme, que marca a aproximação de Tim e Eve. Numa triste (e poética) constatação, descobrimos depois que Tim gentilmente acalentou Eve no momento de sua morte.

Apesar da curta duração do filme, Aimée emprega uma grande quantidade de planos. Aqui fica evidente a sua experiência como desenhista de quadrinhos. Os enquadramentos mudam o tempo todo, pontuando os diálogos, chamando a atenção para pequenos detalhes (o pé de Tim chutando a neve, a mão de Eve segurando o casaco, a neve que escorre da placa do ponto de ônibus, o pé de Eve no degrau do ônibus), aumentando o envolvimento do espectador com as cenas e com os personagens. Considerando que o filme se apóia mais em diálogos do que em ações, a variação dos planos também evita que a monotonia se estabeleça.

A influência dos quadrinhos também se faz notar na forma como Aimée emprega expressivamente os limites do enquadramento - ou o requadro, no jargão das histórias em quadrinhos. Enquanto que no mundo dos mortos os limites são difusos, a realidade tem limites bem definidos.



Histórias em quadrinhos de Aimée de Jongh
Por fim, cabe falar da trilha musical e do som. Aimée postou na web o vídeo do "trabalho em andamento", com "One past two" ainda não terminado na animação e sem música, efeitos sonoros e foley (som dos barulhos das cenas, como os passos de Tim correndo, a porta do ônibus se abrindo, etc.) . Em contraponto ao trabalho final, é curioso ver como uma trilha musical contribui para pontuar e estruturar as emoções e como os trabalhos de som reforçam a espacialidade num filme. O tema musical de "One past two" é delicado, terno, mas ao mesmo tempo melancólico, oferecendo um outro contraste ao leve diálogo dos jovens. Assim como o background, ele prepara o espectador para a revelação final, impedindo que esta se apresente de forma brusca, forçada.

Aimée de Jongh

"One past two" é um destes pequenos filmes que se revelam grandes. Pequenos no sentido de que não são estravagantes, chamativos, e partem de idéias singelas. Mas revelam-se grandes porque são feitos com inspiração e sinceridade, transformando o assunto de que trata em poesia.

"One past two" não revoluciona nem amplia os limites da arte da animação - e nem aparenta ter esta intenção. Mas é exemplar no sentido que cumpre uma das funções da arte, que é a de nos humanizar, nos chamar a atenção para o que somos e o que podemos ser, tocando o nosso ponto mais sensível - o coração.

Parabéns Aimée, vamos ficar de olho nos seus próximos trabalhos.

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Em tempo: "One past two" foi produzido utilizando os programas TVPaint (na animação), Adobe Photoshop (nos backgrounds) e Adobe After Effects (na pós-produção). O céu foi pintado à mão.

(1) A expressão "ilusão da vida" foi empregada aqui fazendo (inlcusive) referência ao célebre livro de Frank Thomas e Ollie Johnston, lendários animadores dos Estúdios Disney - "The Illusion of life - Disney animation" - que trata justamente da habilidade dos artistas do estúdio em criar filmes com personagens críveis, capazes de fazer rir e chorar.

Visitem: www.aimeedejongh.com

Um comentário:

  1. Incrível, ela ter preservado tantas características do quadrinho europeu puro em uma animação tão curta - além de, claro, das características marcantes de cores e traço que constam no portfolio dela. É difícil ver garotas com um traço tão fluido, poético e ao mesmo tempo grosseiro, real, pois normalmente ilustradoras preferem linhas mais finas e temas delicados. Adorei, virou referência.

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