dezembro 26, 2011

Expressões extremas / Extreme expressions

(English translation at the end of post)



Quem gosta de desenhar sabe o quanto pode ser divertido explorar visualmente os extremos de uma expressão, seja ela de dor, alegria, tristeza, espanto ou o que quer que seja. É uma maneira de criar uma caricatura de um sentimento ou reação, deformando o aspecto original de um ser até o limite do reconhecimento. No campo da animação, a súbita mudança de um personagem para uma expressão nos seus extremos é uma gag que sempre funciona. Nos anos 1930, 1940 e 1950 Tex Avery foi o grande mestre das expressões extremas, fazendo disso uma de suas marcas registradas, principalmente nos cartoons do cachorro Droopy.


 
Abaixo, “Cheap Joke”, de Ian Miller, um exemplo recente da exploração gráfica de uma expressão até o seu limite. Com um estilo de animação singular, assumidamente grotesco, que provoca simultaneamente riso e repulsa, Miller é também o criador/animador do ótimo “True Confessions”, apresentado no Ottawa International Animation Festival de 2009.


Cheap Joke from Ian Miller on Vimeo.

ENGLISH TRANSLATION FROM PORTUGUESE:

Who likes to draw knows how much fun can be to visually explore the extremes of an expression, be it pain, joy, sadness, surprise or whatever. It is a way to create a caricature of a feeling or reaction, deforming the original appearance of a being to the edge of recognition. In the field of animation, the sudden change from one character to an extreme in their expression is a gag that always works. In the 1930s, 1940s and 1950s Tex Avery was the great master of extreme expressions, making it one of its trademarks, especially in the Droopy cartoons.

Above, "Cheap Joke" by Ian Miller, a recent example of the graphic exploration of an expression to its limit. With a unique style of animation, admittedly grotesque, which causes both laughter and disgust, Miller is also the creator / animator of the great "True Confessions", presented at the Ottawa International Animation Festival in 2009.

outubro 01, 2011

Arte gráfica e cinema - "Flicks - how the movies began", de Arnold Schwartzman

 "Flicks - how the movies began" é um livro escrito e projetado pelo designer britânico Arnold Schwartzman. É um livro raro, que nunca foi comercializado, já que foi criado para ser oferecido como uma recordação aos convidados da 73ª edição da entrega do Oscar, em 2001, promovida pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. É um livro que presta tributo aos antigos dispositivos ópticos, que criavam a sensação da percepção do movimento em figuras estáticas, baseados no fenômeno da persistência da visão - princípio este que levou à invenção do cinema.

O que torna "Flicks" um livro singular é o fato de que Schwartzman não apenas ilustra, mas recria os dispositivos ópticos (como o taumatróprio, fenaquistoscópio e zootrópio, por exemplo), possibilitando a manipulação dos mesmos pelo leitor, através de recursos de acabamento gráficos (como o pop-up, por exemplo), construindo um fascinante livro-objeto, cujo interesse extrapola o conteúdo textual, já que chama a atenção principalmente para a sua materialidade e estimula o leitor à interação, através da manipulação.

Abaixo, o excelente vídeo de apresentação do livro, criado pelo Broad.cat na ocasião de uma palestra dada por Schwartzman no final do ano passado em Barcelona, no Broad.cat 2010, encontro internacional de design audiovisual.

 

Flicks - How the Movies Began by Arnold Schwartzman from Broad.cat on Vimeo.

setembro 25, 2011

Analogias entre expressão corporal e o traço do desenho



O húngaro Marcell Jankovics (nascido em 1941) integrou o grupo de animadores do lendário Pannónia Filmstúdió, um órgão de cinema estatal (até 1986) da Hungria que produziu, entre os anos 1960 e 1980, impressionantes filmes de animação que conquistaram vários prêmios internacionais (como o Oscar e a Palma de Ouro em Cannes) e influenciaram várias gerações de animadores no mundo todo. Nos anos 1970, Jankovics se firmou como um dos mais bem sucedidos animadores do Pannónia. Os curtas "Mélyvíz" (1970) e "Sisyphus" (1973) estão entre os seus trabalhos mais conhecidos e notáveis. Ambos são elaborados estudos sobre a expressão corporal, além de serem exercícios sobre o potencial expressivo do traço do desenho, empregado para traduzir visualmente - e não somente representar de forma realista - contrações físicas. Em "Mélyviz" (águas profundas, em português) um homem se debatendo desesperadamente para não perder a vida afogando-se, é animado numa constante mutação do seu design, em deformações que vão expressando os diferentes estágios do seu desespero, diante de um inevitável destino.
   



Mélyvíz (1970) por WackyJacky

Como o próprio nome indicia, "Sisyphus" baseia-se na lenda de Sísifo que, segundo a mitologia grega, é um humano que foi condenado pelos deuses a realizar um trabalho monótono e cansativo - o de rolar uma grande pedra para o alto de uma montanha, tarefa esta que dura toda a eternidade, já que, ao chegar ao cume, a pedra sempre rola de volta, retornando ao ponto de partida. Janckovics alterna a espessura dos traços, entre grossos e finos, empregando-os como uma analogia ao processo de inspiração e expiração do personagem. Na alternância entre esforço e (quase) repouso, Sísifo e sua pedra, em alguns momentos, tornam-se uma composição abstrata, reduzida a linhas de força.







Marcell Jankovics - Sisyphus (1974) por jeremyfox

setembro 13, 2011

A inserção do design moderno nos letreiros dos filmes brasileiros - parte 5 (final)





O cinema Underground e o fim da febre dos letreiros elaborados

Conforme foi visto em postagens anteriores, nos anos 1960, o cinema brasileiro entrou na onda dos letreiros elaborados. Com o sucesso dos trabalhos de Saul Bass e de outros title designers americanos, os produtores e diretores começaram a dar atenção para a apresentação dos créditos, contratando profissionais criativos das artes gráficas ou do cinema de animação para criarem sequências que agregassem valor aos filmes. Este fato possibilitou que princípios estéticos do design gráfico moderno se inserissem no audiovisual, ampliando o campo de atuação da profissão. No Brasil, a associação dos filmes com a linguagem gráfica moderna (não só nos letreiros, como também nos cartazes) refletia um cinema que buscava novos desafios. No entanto, com o findar da década de 1960, muitas coisas mudaram no Brasil: o Cinema Novo se reconfigurou para se adaptar ao gosto do público, a revolução sexual fez a chanchada virar pornochanchada, e o design moderno começou a ser refutado por uma nova geração de profissionais que, influenciados pela Contracultura e pelo Psicodelismo, passaram a considerar o modernismo mais uma imposição do status quo. A onda dos letreiros, como todo modismo, passou. A novidade no cinema nacional fica por conta do movimento Underground (também conhecido como Udigrudi ou Cinema Marginal), que associou princípios iniciais do Cinema Novo à Contracultura. Sem regras, espontâneo e irreverente, esse cinema que surge no final da década estimulou um novo tipo de letreiro, contrário à “higiene” do visual moderno. Um dos mais notáveis trabalhos desta fase é o letreiro do animador Marcello Giovanni Tassara para “Esta noite encarnarei no teu cadáver” (1967), de José Mojica Marins (o Zé do Caixão), no qual créditos escritos espontaneamente, nervosamente animados, sobrepõem-se às cenas do filme e criam uma enérgica e arrojada introdução à narrativa. Um trabalho de grande originalidade, que de certa forma antecipa os letreiros pós-modernistas que Kyle Cooper realizaria nos anos 1990, para filmes como "Seven" e "The island of Dr. Moreau".



O trailer de "Esta noite encarnarei no teu cadáver" - que segue o mesmo trabalho tipográfico do letreiro - pode ser visto aqui:


Cabe também citar aqui o letreiro integrado ao espaço diegético de “O bandido da luz vermelha” (1968), apresentado como informações de um noticiário luminoso. Não creditado, imagina-se que o designer do letreiro tenha sido o próprio diretor do filme, Rogério Sganzerla. Uma solução visual perfeita para um filme estruturado na intensidade e agressividade dos noticiários policiais sensacionalistas.


Entre os transgressores, encontra-se também o letreiro do animador Joaquim 3 Rios (também conhecido como Joaquim Três Rios) para "Bang Bang" (1971) de Andrea Tonacci, no qual os nomes da equipe técnica são apresentados no mesmo tamanho do nome dos atores e sem estarem associados às funções que desempenharam no filme. Um resultado curioso, que reforça a idéia do filme como uma obra coletiva, no qual todos são responsáveis pelo resultado final. Além deste detalhe, a sequência é admirável pela tensão criada entre a ação e a aparição dos créditos. Estes vão surgindo no centro da tela, ampliando-se sucessivamente, até sairem do campo visual. A ação é um plano sequência em linha reta, que acompanha a movimentação de três personagens em um grande galpão. Os créditos aparecem de forma a explicitar a simetria da imagem e a movimentação da câmera. Por outro lado, há uma curiosa tensão entre a sobriedade do plano e a teatralidade da aparição dos créditos, assim como também há tensão entre o apuro técnico, presente no impecável movimento de câmera, e o caráter quase surreal do conteúdo da cena.






Bang Bang letreiro por graphicinema

Na década de 1970 os letreiros dos filmes brasileiros voltam a ser uma mera formalidade, prevalecendo a solução de apresentá-los sobrepostos à ação narrativa, mas sem a relação estrutural proposta por Lygia Pape. Na verdade, pode-se dizer que os trabalhos inventivos em letreiros deixam o cinema para serem assimilados pela televisão, numa nova funcionalidade, convertendo-se em vinhetas de aberturas de programas, funcionando como uma atração visual para fisgar o telespectador, evitando que ele mude de canal.

-------------------------

"Bang Bang" encontra-se disponível em DVD no Brasil, sendo o primeiro volume da coleção "Cinema Marginal Brasileiro" da Lume Filmes.
www.lumefilmes.com.br

setembro 06, 2011

A inserção do design moderno nos letreiros dos filmes brasileiros - parte 4

Outros designers, outros letreiros dos anos 1960

Seguindo a febre dos letreiros elaborados nos anos 1960 (desencadeada a partir do sucesso dos trabalhos de Saul Bass e dos letreiros dos filmes das franquias 007 e A Pantera Cor-de-Rosa), surgem no cinema nacional trabalhos notáveis de alguns designers, artistas, ilustradores e animadores que criaram obras de referência, no entanto atuando de uma forma mais esporádica, ao contrário de Lygia Pape e Roberto Miller (vistos em postagens anteriores). Um nome que merece destaque especial é o de Valdi Ercolani, do qual se tem notícia somente o design de dois letreiros, feitos para “Noite Vazia” (1964) e “O corpo Ardente” (1966), ambos dirigidos por Walter Hugo Khouri. Assim como em Miller, Saul Bass exerceu uma forte influência sobre os letreiros de Ercolani, sendo sua sequência para “Noite Vazia” uma espécie de releitura do letreiro de Bass para o filme “Spartacus” (1960). Entretanto, apesar da influência ser evidente, Ercolani reveste com um novo significado a idéia de Bass, dando originalidade para a sequência (que consiste numa série de esculturas de faces e bustos dilacerados que se interpenetram em lentos dissolves), criando uma peça fílmica muito bem fotografada, combinada aos créditos que são apresentados numa delicada proporção e num adequado estilo tipográfico, resultando num dos mais belos e mais bem acabados letreiros do cinema nacional.


Noite vazia letreiro por graphicinema
O letreiro de Ercolani para “O corpo ardente” é também notável no acabamento. Tendo tido experiência profissional na área da publicidade em Los Angeles, Ercolani trouxe a influência do design moderno norte-americano não só para os letreiros, mas também para a publicidade cinematográfica brasileira. Além dos letreiros, Ercolani também fez os cartazes de divulgação de “Noite Vazia” e “O corpo ardente”. O primeiro inclusive contém um design evidentemente inspirado no símbolo gráfico criado por Saul Bass para o filme “Anatomy of a murder” (1959) de Otto Preminger.

A publicidade moderna norte-americana influenciaria também a linguagem de outros esporádicos title designers brasileiros, como Glauco Rodrigues que, junto com o norte-americano David Drew Zingg, concebeu o letreiro de “Garota de Ipanema”, em 1967; ou o designer anônimo (não creditado) do letreiro de “Bebel garota propaganda” (1968), filme de Maurice Capovilla que trata justamente do mundo da publicidade. O letreiro deste filme é outro marco do title design nacional nos anos 1960, tanto pela inventividade, como pela forma como reflete a cultura e a linguagem visual da época, sendo uma espirituosa collage de diversos stills publicitários.


Bebel garota propaganda letreiro por graphicinema

O estilo do letreiro também está muitas vezes relacionado ao estilo do diretor que, principalmente a partir dos anos 1960, passou a dar mais atenção a esta sequência do filme, considerando-o como parte da sua proposta narrativa. Esta influência do diretor pode ser percebida nos letreiros de “Todas as mulheres do mundo” (1966) e “Edu coração de ouro” (1967), criados por Jaguar e pelos Irmãos Capela, respectivamente. O que se percebe em ambos é a marca do diretor Domingos Oliveira, mais do que a marca dos designers. Em ambos os filmes, Oliveira congela a ação narrativa para o aparecimento dos créditos, criando efeitos cômicos e irreverentes, ou apresenta os créditos associados à ação, como no final do letreiro de “Edu coração de ouro”, no qual os créditos sobem pesadamente, refletindo o cansaço do personagem que está subindo uma escadaria.


Assim como é notável o trabalho tipográfico no letreiro de "Edu", também o é no letreiro de Ziraldo para “Os cafajestes” (1962). O cartunista Ziraldo, embora tenha feito dezenas de cartazes de cinema, infelizmente, ao que parece, projetou poucos letreiros. Seu trabalho mais digno de nota está em “Os cafajestes”, no qual os créditos são apresentados depois de um tempo de ação narrativa, no qual o personagem de Jece Valadão é apresentado ao público. O título do filme aparece quando este personagem, do alto de uma janela, zomba da prostituta que enganara. O título surge pontuadamente sobre sua gargalhada de escárnio, vista atrás das tiras de uma persiana. Fragmentado tal como se também estivesse sendo visto entrecortado pela persiana, o título surge aos poucos: “cafa”, “cafajeste”, “os cafajestes”. Com esta solução, o título ganha mais sentido e, por outro lado, reforça o sentido da cena e a relação entre título e filme se estabelece.



Ziraldo sempre flertou com o design gráfico moderno em seus trabalhos impressos, entretanto sem nunca adotar por completo a rigidez do design proposto pela Escola de Ulm (que seguia o modelo do design moderno suíço). Entretanto, seu letreiro para “Os cafajestes” é um perfeito exemplo da estética modernista empregada nos letreiros. A inlfuência do design objetivo da Escola de Ulm também está presente no letreiro de "Os fuzis" (1964), um trabalho que inclusive remete aos letreiros de Lygia Pape. Demonstrando ecletismo, Ziraldo criou para "Grande sertão" (1965) um letreiro composto de uma montagem fotográfica, sobreposta por uma aparição pontuada dos créditos.























































































































O lado cartunista de Ziraldo está mais presente no letreiro de "Os cosmonautas" (1962), no qual, seguindo o layout criado por ele para o cartaz do filme, elabora uma simpática sequência animada, com as caricaturas dos protagonistas Ronald Golias e Grande Otelo.













































Famoso pelo célebre cartaz que criou para "Deus e o diabo na terra do sol", um marco do design gráfico brasileiro, Rogério Duarte também foi designer de letreiros. Não se sabe com precisão a total extensão da sua atuação neste segmento (fato que também ocorre quando levantamos os trabalhos dos demais title designers brasileiros), mas seu nome aparece como o responsável pelos letreiros, nos créditos do curta "Brasília, contradições de uma cidade nova" (1967) e do longa-metragem "Cara a cara" (1967).




O uso de fotografias, editadas de forma dinâmica, foi um recurso empregado com uma razoável frequência nos letreiros brasileiros. Um exemplo que merece ser citado é o trabalho de José Henrique Bello para "Garrincha, alegria do povo" (1962), no qual a câmera busca novos enquadramentos em fotos de partidas de futebol. Ao invés dos créditos se sobreporem às fotografias, eles são apresentados numa tela preta que, de forma fragmentada, vai ocupando o lugar da imagem.



Para finalizar, cabe citar alguns letreiros realizados por animadores, como os trabalhos de Ely Barbosa (supervisionado por Roberto Miller) para “O santo milagroso” (1966), de Anélio Latini Filho para “O levante das saias” (1967) e de Yppê Nakashima para “Panca de valente” (1968), todos animadores clássicos. Latini Filho é um pioneiro do cinema de animação brasileiro, tendo realizado o primeiro longa metragem animado de nosso país, "Sinfonia Amazônica", concluído em 1953. Nakashima foi também um pioneiro da animação. Tendo atuado na publicidade, realizando comerciais animados que fizeram história, lançou o longa metragem "Piconzé" em 1972, o mais bem acabado filme animado feito no Brasil até então. Seu letreiro para "Panca de valente" contém um design que lembra muito o de "Piconzé", contendo boas soluções na integração imagem-texto.



-----------------------

Para conhecer mais o trabalho de Yppê Nakashima, vale a pena acessar o site:

www.nucleovirgulino.com.br/ypenakashima/

Nele é possível ver na íntegra "Piconzé", bem como um recente documentário sobre Nakashima, além de vídeos dos outros trabalhos do animador. Obrigatório para os estudiosos da animação nacional.

agosto 16, 2011

Um letreiro sobre os designers que mudaram a história dos letreiros

O holandês Jurjen Versteeg publicou há cerca de um mês o seu trabalho de graduação no Vimeo. Apaixonado pela arte do title design, Versteeg criou um letreiro hipotético, que pudesse servir para um eventual documentário sobre a história dos letreiros. Para estruturar seu filme, Versteeg se baseou nos trabalhos principais dos grandes title designers, que fizeram destas sequências uma nova forma de arte (um híbrido de design gráfico com cinema): George Méliès, Saul Bass, Maurice Binder, Stephen Frankfurt, Pablo Ferro, Richard Greenberg, Kyle Cooper e Danny Yount. A inclusão de Méliès é curiosa, já que geralmente se fala de letreiros a partir de Saul Bass (isto é, de 1954 para frente). Entretanto, é procedente, já que aparentemente Méliès foi quem deu início (em 1902) ao uso dos letreiros – então na forma de cartões filmados - nos filmes.

As referências de Jurjen Versteeg
No seu letreiro hipotético, Versteeg criou uma elaborada peça fílmica. Chama a atenção a bela fotografia, as pontuações criadas pela delicada trilha sonora, o cuidadoso trabalho dos efeitos sonoros e, principalmente, o excelente trabalho de edição. Reside aqui o principal ponto de atenção do letreiro. Versteeg orquestra uma elaborada sinfonia de movimentos dinamizando os espaços criados pelos enquadramentos. Movimentos captados pela câmera produzem desenhos no espaço (círculos, arcos, linhas paralelas, diagonais, formas aleatórias). Versteeg tem consciência disso e combina brilhantemente estes padrões formais, criando uma sinfonia visual. Há musicalidade no seu letreiro, uma musicalidade construída pelos movimentos, independentemente da trilha musical.


O tributo que Versteeg presta aos mestres do title design também é original. Ele evoca os trabalhos destes profissionais integrando-os e fazendo-os funcionar para a estrutura do seu letreiro. Neste sentido, cada apresentação dos designers (e das idiossincrasias que caracterizam os seus trabalhos principais) cria pontuações que dão diversidade e variedade para a sequência.


A History Of The Title Sequence from jurjen versteeg on Vimeo.

-------------------

Agradecimento especial ao Thales Mion, que me chamou a atenção para este vídeo.

agosto 13, 2011

A inserção do design moderno nos letreiros dos filmes brasileiros - parte 2

Lygia Pape e o letreiro objetivo

A artista multimídia brasileira Lygia Pape (que neste ano ganhou uma grande mostra no Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia de Madrid) pode ser considerada a title designer oficial do Cinema Novo, principalmente na primeira fase deste movimento, tendo trabalhado para os seus mais importantes diretores. Familiarizada com as ramificações mais radicalmente estruturais da arte moderna, graças a um forte contato com o concretismo e à sua participação no Grupo Frente nos anos 1950 (considerado o berço dos neoconcretos), Pape abordou os letreiros numa forte sintonia com o padrão de design da Escola de Ulm. Assim sendo, apesar de ocasionais associações com a tradição gravurista brasileira, nos letreiros de “Memória do Cangaço" (1964) e “Menino de Engenho” (1965) - este último com gravuras de Portinari - nas outras vezes Pape lançou mão de uma abordagem radicalmente objetiva, vendo o letreiro na sua função informativa, associando assim as informações tipográficas ao filme da maneira mais neutra possível.


A maior evidência da objetividade de Pape está na sua escolha tipográfica. Sua preferência pela tipografia sans serif, neutra, semelhante à das famílias Akzidenz-Grotesk e Helvética – a família tipográfica neutra e suíça por excelência – dá objetividade para as palavras, permitindo que seus significados surjam de uma forma mais pura e, talvez por isso mesmo, com a sua força natural, sem a interferência do designer. Com a sua clareza de leitura e assertividade, este estilo tipográfico não dramatiza, somente informa, confiante no poder significativo das palavras.

Este aspecto se verifica no letreiro de “Vidas Secas” (1963), no qual os créditos são apresentados sobre a ação narrativa, no momento de apresentação do espaço diegético: o sertão nordestino, com seu solo seco e sol escaldante. Enquanto o enquadramento divide a tela horizontalmente em duas partes, sendo o céu límpido no topo e solo seco na base, Pape apresenta os créditos em branco sobre o solo, encadeando-os no tempo paralelamente à linha do horizonte. Quando o título do filme aparece – sem nenhum alarde, somente um pouco maior que os demais – a informação “vidas secas” surge como uma legenda daquilo que a cena apresenta, algo que se reforça à medida que silhuetas humanas vão surgindo no horizonte, revelando a existência de vida num cenário inóspito. As informações tipográficas se integram à cena sem destruir sua dramaticidade inerente, fazendo-se neutra e informativa, sem excesso ou pedantismo. O drama já está na cena filmada, restando somente aos créditos (na verdade uma convenção do produto fílmico) a função de se integrar a esta, dando-lhe sentido (ao informar o título) e se integrando à sua estrutura visual. Entretanto, esta objetividade não tira o mérito estético deste letreiro. Ao contrário, ele é um exemplo prático da estética que nasce da função, ou seja, da beleza que brota da adequação do projeto ao seu propósito.

Resultado semelhante ocorre no letreiro de “Deus e o diabo na terra do sol” (1964), cujos créditos também são apresentados sobre a ação narrativa que, tal como em “Vidas Secas”, revela o espaço diegético (desta vez numa vista aérea), assim como o protagonista. Destaca-se a forma como Pape subverte a hierarquia da apresentação dos créditos ao posicionar o nome do ator principal (Geraldo Del Rey) após a apresentação dos créditos técnicos, sobre a imagem do seu personagem. Esta subversão cria uma interessante pontuação, justamente num momento no qual a sequência muda de tom, indo do plano aberto da vista aérea para um big close de um bovino morto, castigado pela seca. Em seguida a câmera enquadra o sertanejo (Del Rey) que observa a carcaça do animal e se levanta, numa tomada de atitude.

Esta pontuação criada pelos créditos sobre a ação narrativa continuará sendo explorada por Pape nos letreiros de “A falecida” (1965) e “O padre e a moça” (1966). Além deste aspecto, é notável nos letreiros destes dois filmes a perfeita integração dos blocos de textos sobre a imagem filmada. Pape posiciona a informação tipográfica sobre as “áreas mortas” da cena, criando uma perfeita integração entre imagem e texto.

Ainda sobre Pape, cabe citar seus letreiros para “Maioria absoluta” (1964) e “O desafio” (1965).  Nestes dois filmes, ao contrário dos demais, os letreiros são apresentados na forma de cartões filmados. Sem a imagem ao fundo, a objetividade da diagramação sóbria e o caráter assertivo da tipografia sans serif se sobressaem ainda mais. O design empregado nos dois filmes é o mesmo, ainda que sejam produções diferentes tanto na forma como no conteúdo (“Maioria absoluta” é um documentário em curta-metragem e “O desafio” é um longa de ficção). Nestes trabalhos, Pape assume (e por isso mesmo evidencia) a natureza burocrática e obrigatória do letreiro – um rótulo do filme, e nada mais, cuja obrigação do designer ao projetá-lo passa a ser somente a de apresentá-lo segundo as leis do “bom design” (legível e bem diagramado). Uma postura que de certa forma pode ser vista como uma alternativa (ou mesmo uma crítica) ao modelo do letreiro como peça de entretenimento, esteticamente autônoma em relação ao filme, proposta por Saul Bass.


A sobriedade, a economia e o despojamento dos letreiros de Pape se adequam à proposta do Cinema Novo: é direto, verdadeiro e até mesmo original, sem emulações ao padrão visual norte-americano. Também é novo, fresco, arejado, liberto dos ícones e grafismos decorativos. Ao mesmo tempo também é adequado à realidade econômica da produção nacional da época, já que era prático, barato e fácil de ser produzido.

A cópia restaurada de "Maioria absoluta" encontra-se disponível no YouTube, em versão integral, dividida em 02 partes. Oportunidade para ver o letreiro de Pape no contexto do filme e para conhecer o trabalho do grande Leon Hirzsman, diretor do filme. Abaixo, a primeira parte: